A cultura do estupro na sociedade brasileira

Por Luisa Paciullo*

Há pouco mais de 2 semanas, a mídia brasileira e as redes sociais só tinham olhos para uma notícia: a acusação de que o jogador Neymar Jr. teria estuprado uma mulher. Discussões acerca da acusação não serão tema deste texto, mas sim, uma breve reflexão sobre a cultura do estupro. A acusação trouxe à tona importantes debates acerca deste crime gravíssimo que, por conta de uma série de fatores culturais e históricos, se tornou um dos crimes mais silenciados e normalizados do Brasil.

A sociedade patriarcal, a violência de gênero, a culpabilização e julgamento da vítima e a objetificação da mulher, são critérios determinantes para definir uma “cultura do estupro” que o nosso país, infelizmente, se encaixa. O estupro é o único crime que a vítima é considerada culpada pelo acontecimento.

O estupro é um dos crimes mais subnotificados que existem. A primeira e única pesquisa de âmbito nacional sobre o estupro foi realizada pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (o IPEA), com recorte de 2011 a 2014. A pesquisa identificou que há, em média, 527 mil tentativas ou casos de estupro anualmente no Brasil, mas apenas 10% dos casos de estupro são reportados à polícia.

A pesquisa identificou também que 88,5% das vítimas são do sexo feminino, 70% desses são crianças e adolescentes e, pasmem com a informação de que 96,66% dos agressores são do sexo masculino, dentre os quais 24,1% são os pais e 32,2% amigos ou conhecidos da vítima. Os números são importantíssimos para entendermos os fatores sociais e culturais que tornam o estupro um crime normalizado e silenciado no Brasil e que existe muito mais gente com medo de denunciar do que gerando denúncia falsa.

E é com isso que devemos nos preocupar. Como garantir a segurança de uma vítima, se, geralmente, ela é uma criança, um adolescente ou uma mãe que vive constantemente o medo de denunciar o próprio pai/marido/companheiro? A Justiça brasileira tem condições de protegê-las? Como, afinal, se livrar do estuprador, do medo, das ameaças?

Hoje, a vítima deve procurar qualquer delegacia, oferecer a denúncia e fazer um exame de corpo de delito. O depoimento da vítima é o suficiente para que se concretize a denúncia, mas existem diversos relatos de vítimas sobre os constrangimentos sofridos nas delegacias. Novamente, vemos como se manifesta, ainda com muita força, a cultura do estupro. Tive acesso a uma pesquisa que analisa a cultura do estupro nas decisões judiciais do Tribunal de Justiça de São Paulo.

Foram analisadas 63 sentenças. Foi percebido que a “mulher honesta”, ou seja, a mulher que se encaixe no perfil com “boa reputação”, “recatada” tem credibilidade perante o Poder Judiciário. Além disso, a “mulher honesta” deve demonstrar que lutou e resistiu “bravamente” contra as tentativas do estuprador.

Por outro lado, existem as mulheres que “não são confiáveis”. A pesquisa indica que há uma tendência a crer que a mulher mente sobre acusações de estupro e isso é refletido no Judiciário. Depoimentos não convincentes, demora para denunciar, falta de lesões físicas, falta de emoções, uso de bebida alcóolica, entre outros, são fundamentos comumente usados pelos juízes quando há absolvição do agressor.

Algumas mudanças no legislativo foram feitas ao longo dos anos: a possibilidade de aborto em caso do estupro; a criação da Lei Maria da Penha, que foi importantíssima para a proteção da mulher que sofre violência doméstica; o estupro deixou de ser um crime de ação penal privada, passando a ser pública condicionada à representação.

Essas mudanças foram essenciais, mas, ainda é evidente que falta muito caminho para que a cultura se modifique. O reflexo da nossa sociedade ainda extremamente machista e patriarcal culmina em uma cultura do estupro latente e que precisa de muita atenção, tanto da sociedade, como do Estado.

Fontes:
CERQUEIRA, Daniel; COELHO, Danilo de Santa Cruz. Estupro no Brasil: uma radiografia segundo os dados de Saúde (versão preliminar – nota técnica). Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, nº 11, Brasília, 2014.
ALMEIDA, Gabriela Perissinotto; NOJIRI, Sérgio. Como os juízes decidem casos de estupro? Analisando as sentenças sob a perspectiva de vieses e estereótipos de gênero. Ver. Bras. Políticas Públicas, Brasília, v.8, nº 2, 2018, p. 825-853.
Ação penal privada significa que a queixa deve ser feita pela própria vítima, ela é a titular do processo e deve manter interesse em leva-lo até o final. Já ação penal pública condicionada à representação significa que a vítima autoriza o Estado (Ministério Público) a instaurar a ação e a investigação, sendo irrelevante se a vítima mudar de ideia depois.

Luisa é formada em jornalismo, hoje é advogada de profissão e cozinheira de paixão.
@lupaciullo