O AFETO NAS REDES, O COMPARTILHAMENTO E A MASCULINIDADE

Por Alice Milagres*

colagem exclusiva feita por @aletraeffe

Quando a Nath me pediu para escrever esse texto eu comecei a procurar em trabalhos acadêmicos estudos que falassem sobre o íntimo, o público e o privado nas redes sociais para me pautar em pensadores importantes, mas achei melhor começar pela minha experiência, que também pode ser sua e não precisa de grandes citações para ser compreendida.

Acredito que todo mundo ou quase todo mundo que você conhece está ou já esteve no Instagram, seja 100% ativo ou mais fantasma, apenas observando e acompanhando, e a gente sabe que hoje as redes sociais são um grande material de estudo de comportamento e pautam muitas “discussões de relação” dentro dos namoros, casamentos, relações fechadas, abertas, poligâmicas, monogâmicas, heteronormativas ou não. Então, gostaria de fazer esse recorte na minha reflexão e experiência pessoal como uma mulher heterossexual, branca e que nunca expôs muito sua privacidade no seu perfil.

Eu já estava há 8 meses numa relação quando minha mãe – muito ativa nas redes – postou uma selfie na mesa do bar com alguns amigos dela, eu e meu namorado da época. Normal né? Pois é, isso foi no sábado e o domingo inteiro foi pautado por um desespero do meu ex-parceiro pela exposição desse momento informal nas redes e que ele não gostava disso. Minha mãe excluiu a marcação que tinha feito do perfil dele na foto e eu sem entender muito a lógica dos argumentos passei o dia inteiro ouvindo: “eu uso meu Instagram para trabalho, normalmente 300 pessoas entram no meu perfil por dia e olha 1500 entraram, eu não quero essa gente aqui, eu perco o controle.” E aí, você vai me dizer: “puts mana, cilada, boy lixo”, e eu respondo: sim, sim e sim, mas acho que a discussão vai bem além.

Por que ele se sentiu invadido? Quais seriam esses contornos do íntimo, privado e público de uma atriz divulgar o perfil de um fotógrafo? Profissões que se cruzam e redes usadas para trabalho que se complementam? Por que falar que você está num relacionamento nas suas redes sociais gera tanto peso para os homens? Será que é porque o Instagram é o novo Tinder? E, sendo assim, talvez flertar com uma terceira pessoa não seja mais interessante se ela souber que existe alguém com quem você se relaciona na sua vida?

Acho válido que essas perguntas sejam respondidas baseadas numa reflexão dos conceitos de monogamia e patriarcado, porque sabemos que a não-monogamia de certa forma não cumpre os requisitos políticos da igualdade de gênero e não é um ato realmente transformador na vida de muitas mulheres, ainda oprimidas pelo sistema. Enquanto isso, meu feed se inunda de mulheres incríveis fazendo posts de afeto para seus parceiros, amigues, divulgam trabalhos e criam esse conceito de rede, tão esquecido pelos que não entendem a potência do Instagram como, por exemplo, uma plataforma incrível de “mandar jobs”.

Pensando que o Instagram pode ser uma base de estudos comportamentais, e que a nossa sociedade é patriarcal, falar de afeto nas redes me faz pensar que podemos fazer um recorte de gênero no conteúdo gerado nesta rede. Como? Assim, olha:

1. Entre nos perfis de duas pessoas que formam um casal.
2. Veja os posts deles e responda: quem tem mais publicações do companheire? Quem compartilha mais momentos do casal?

E foi pensando nisso por alguns anos que me deparei recentemente com uma publicação que dizia: Quantos homens você conhece que divulgam o trabalho da companheira? Vi cerca de 10 mulheres compartilhando essa publicação que, inclusive, tinha centenas de comentários nos stories respondendo à pergunta na forma de enquete com as opções de resposta: “já vi” ou “risos”.

Em todas as enquetes, “risos” ganhava disparado. Recebi mensagens e mulheres que diziam: “nossa pauta de várias discussões por aqui”, “nossa amiga quando namorava o fulano compartilhava todo o rolê dele de dj e ele nunca compartilhou meus projetos de arquitetura”, “o meu nunca porque dividimos a mesma profissão, e aí já viu né? Ele tem que estar melhor na fita.”, e por aí vai…

Muitos homens também mandaram mensagens falando: “eu compartilho, mas já reparei que sou exceção”.

A frase “ele tem que estar melhor na fita” ecoou na minha cabeça. Penso que existe um pensamento machista de que demonstração pública de afeto é uma invasão de privacidade, pautado em uma ideia de que estar em uma relação é algo que enfraquece o homem, mas fortalece a mulher.

Além da lógica machista que conhecemos de longa data que é em comparação ao parceiro, se a mulher é mais bem-sucedida profissionalmente, isso passa a ser um incômodo até para o mais “desconstruído” dos machos.

 “Ah, mas as redes sociais são tóxicas e sem esse mimimi, nem existiria essa discussão, compartilha quem quer, o que quer”.

Será? No dicionário, compartilhar está como verbo transitivo direto ou indireto: “tomar partido em; fazer parte de algo com alguém; dividir.” E se relacionar não é isso? Concordo com esse livre arbítrio de usar suas redes da forma que lhe convém, mas acho interessante refletir: se seu parceiro não te apoia offline, dificilmente vai te apoiar online. E não há dúvida de que o apoio offline é bem importante, mas se seu companheiro te apoia fora das redes, por que não apoiar dentro delas também? O que impede os homens de demonstrarem mais afeto pelas suas parceiras e compartilharem mais? O medo à exposição do íntimo? O patriarcado? A poligamia? A masculinidade tóxica?

Hoje, depois de quase 8 meses em casa, as redes sociais se tornaram um alicerce das relações para se conectar com quem você deseja, homenagear e estar de alguma forma mais perto, até mesmo aquele amigue que nunca postou nada deu alô no Instagram na quarentena. Renato Nogueira, no livro “Porque amamos. O que os mitos e a filosofia tem a dizer sobre o amor”, conta que na filosofia dagara – povo do oeste da África- “a aldeia inteira deve se envolver na vida dos cônjuges. Amar exige apoiar e ser apoiado por outras pessoas, inclusive ancestrais”. Eu quero que a minha aldeia inteira se envolva na minha relação? Não quero, não. Mas existe um sentido de existência no conceito da participação dessa aldeia ou comunidade. Compartilhar é apoiar, é validar, é existir e também é amar nos tempos modernos. Termino essa reflexão com esse meme (risos) e, se pudesse acrescentar algo, escreveria “essa é minha mina gente olha o trabalho dela, olha eu aqui sentado tomando uma breja com a minha sogra, olha essa foto que eu tirei dela, olha ela”.

 Alice é atriz, performer, publicitária e uma entusiasta do comportamento nas redes.
@alicemmilagres