CUIDADO, MULHER!

Por Nathália Oliveira*

Colagem: @aletraeffe

Uma das atividades que tem acalmado meus nervos nessa quarentena é ir tomar mate (não o Leão, o chimarrão argentino mesmo) e ouvir música em um mirante que tem na esquina aqui de casa, com vista para o Cristo Redentor. A pedra onde me sento para apreciar a música, a yerba e a vista não é muito ampla, mas é suficientemente segura para umas quatro pessoas se sentarem confortavelmente sem correr o risco de cair na parte debaixo da rua. Alguns carros passam, vejo algumas pessoas de máscara passeando com seus cachorros…pouco movimento, bastante silêncio.

Eis que outro dia tive uma interação inusitada: um homem branco, com a máscara no queixo, dirigindo um carro amarelo que não era um táxi, passou lentamente perto de mim até parar. Eu estava ouvindo música, mas percebi que ele queria a minha atenção e tirei um dos fones de ouvido. Imaginei que ele quisesse alguma informação, muita gente fica perdida nessa parte do bairro.

“Cuidado aí, hein!”, disse o homem.

Continuo olhando para ele em silêncio.

“Toma cuidado aí, hein!”

Sigo olhando, sem reação. Outro carro desce a rua e desacelera atrás do carro amarelo.

“Cuidado aí!”

“Tá.”, respondo.

E o carro amarelo segue seu rumo.

Pasmem: a primeira coisa que me passou pela cabeça foi: “vou embora”. Mas, logo me questionei: “vai embora por quê? Está com medo de quê?”. E fiquei lá, refletindo sobre essa interação.

À princípio, entendo que o homem queria me alertar sobre algum perigo. Mas ele não disse qual. Ele repetiu três vezes a palavra “cuidado”, em tom de alerta, sem me explicar com o quê eu deveria tomar cuidado. Acho que continuei olhando para ele sem responder esperando o complemento do alerta, que ele me dissesse o motivo pelo qual eu deveria tomar cuidado. E mesmo sem conhecer esse motivo, a minha reação imediata foi a de sair dali. Realmente tive medo. Vejam que curioso: um homem que não me conhece me alerta sobre algum perigo desconhecido e minha primeira reação é a de obedecer ao comando desse estranho e me retirar daquele espaço, que é público, e voltar para a minha casa.

Claro, na minha cabeça feminina, doutrinada a ter medo e a estar sempre alerta quando no ambiente público, passam, em um único flash, todas as possíveis formas de violência, abuso ou ataque que algum terceiro possa me causar. “Será que o homem no carro amarelo sofreu uma tentativa de assalto na rua e está querendo me alertar? Será que ele viu alguém se aproximando do local onde eu estava? E por que esse alguém oferece algum perigo? Será que ele estava com medo de que eu caísse do mirante?”. Essas perguntas me atravessaram em meio segundo com uma onda de medo que percorreu todo o meu corpo.

Mas eu não me levantei. Continuei ali, sentada, observando o meu medo e comecei a pensar sobre os mecanismos que fazem de nós, mulheres, reféns desse sentimento quando estamos no espaço público.

Pode ser que o motorista do carro amarelo estivesse se referindo ao mirante ao meu lado e o que ele queria era que eu “tivesse cuidado” com a borda. Mas, mesmo nesse caso, me pergunto se ele pararia o carro para fazer esse alerta a um homem sentado ali. Prefiro acreditar que o cidadão teve a melhor das intenções, mas é inevitável observar o quão autorizados os homens se sentem a nos invadir quando estamos sozinhas no espaço público, ainda que seja com uma “boa intenção”.

O sistema machista revela nesses momentos a sua complexidade e um dos aspectos do seu êxito em oprimir e se perpetuar: o medo como ferramenta para que a mulher nunca se sinta segura, inteira, no espaço público. Este espaço que, para o machismo, deve ser hostil à nós, quando desacompanhadas. Este espaço que não nos pertence, no qual ou somos coadjuvantes ou estaremos vulneráveis.

Um homem passa por uma mulher na rua e se sente livre para dizer apenas “cuidado”. Ele não sente a necessidade de explicar mais. Para ele, deve estar subentendido o que uma mulher sozinha deve temer ao ocupar a rua: tudo.

Nathália Oliveira vive de contar histórias e é a criadora deste projeto. @anath.oliveira