“EM NOME DE DEUS” – A CURA MILAGROSA SE CHAMA FEMINISMO

Por Nathália Oliveira*

No final de 2018, quando já havia mais de 500 denúncias de abuso sexual contra João Teixeira de Faria, o João de Deus, eu escrevi este texto, sobre a importância de valorizarmos a força dessas mulheres que quebraram o silêncio e vieram à público contar o que sofreram nas mãos do suposto médium. Naquele momento, eu desconfiei que este era o aspecto mais importante desta história, que já mostrava alguns de seus traços mais bizarros.

Mas foi só essa semana, depois de devorar os 6 episódios da série documental Em Nome de Deus, produzida pela equipe de jornalismo do programa Conversa com Bial, que eu realmente me dei conta da imensa importância da bravura dessas mulheres.

A série faz uma boa costura entre a narrativa da investigação jornalística, que começou em uma pauta como outra qualquer para o talkshow de Pedro Bial, e as histórias de dor e coragem das vítimas de João de Deus. O entrelaçamento dessas duas camadas nos ajuda a entender o valor imensurável das denúncias já que, graças a elas, a verdade sobre a máfia liderada pelo charlatão de Abadiânia foi levada ao grande público em um momento histórico em que a Justiça brasileira não tem mais a escolha de se omitir diante dos crimes contra as mulheres.

O documentário mostra que antes da holandesa Zahira Mous falar ao programa do Bial, já existiam denúncias oficiais contra João de Deus que foram arquivadas, e até um documentário australiano que desvendava partes da teia macabra do falso curandeiro e que nunca chegou ao grande público no Brasil. A cada atrocidade revelada pelos episódios, quem assiste se pergunta: “como esse homem conseguiu enganar tantas pessoas por tantos anos? E como seus crimes não vieram a público antes?”. A resposta de como ele reuniu tanto poder em torno de si não é uma só, mas o detonante de sua ruína sim: o feminismo.

O que leva um charlatão com supostos poderes mágicos a ganhar tanta notoriedade é, a meu ver, uma reunião de fatores: a fragilidade da estrutura do Estado em um país como o Brasil, histórico de abandono da população mais vulnerável, pessoas com muito dinheiro e más intenções, enfim…muitas coisas. Mas a verdadeira mágica acontece quando um poder, muito mais forte do que qualquer messias autodeclarado, desperta através da união de vozes femininas. Não é à toa que mulheres foram o alvo preferido da Igreja Católica em um passado não muito distante, quando éramos assassinadas em fogueiras, e não é à toa que seguimos sendo o elo mais fraco de praticamente todas as hierarquias religiosas do mundo.

E qual é a diferença entre as mulheres do passado, queimadas como bruxas, e as de agora, que conseguem levantar suas vozes e destruir um farsante messiânico com mais de 5 décadas de atuação? A resposta é: um movimento com pouco mais de um século de existência e que há apenas 6 anos se tornou pauta prioritária no Brasil e no mundo de forma irrevogável. O movimento feminista. Graças à luta incansável de mulheres ao longo da História e ao recente levante da nossa geração, a violência contra a mulher não é mais algo a ser ignorado, silenciado, menosprezado.

Em Nome de Deus traz diversas imagens das cirurgias espirituais que João de Deus performava diante de seus fieis. Cortes eram feitos nos olhos, na pele, no nariz das pessoas que estavam ali, genuinamente acreditando que aquilo poderia curá-las. Há também imagens em que João de Deus mastiga cacos de vidro sem que sua boca sangre, como uma prova de sua relação com o divino. Mas nada disso me impressionou.

O que há de realmente mágico na série são os trechos em que sete de suas vítimas se reúnem em roda para dividirem umas com as outras os abusos terríveis que sofreram. Nesse momento sim, estamos diante da verdadeira experiência de cura. Uma cura que não se limita às vítimas de João de Abadiânia, mas que se estende a todas as mulheres que sofreram e sofrem com as opressões dessa sociedade machista. Nesse momento testemunhamos algo que eu já desconfiava quando escrevi aquele primeiro texto em 2018: a verdadeira cura milagrosa desta história acontece entre as mulheres.

Nathália Oliveira vive de contar histórias e é a criadora deste projeto. @anath.oliveira