Futebol feminino: sobrevivendo a um 7 a 1 diferente desde sempre

Por Eliane Martins*

Todo dia nasce pelo menos uma menina com potencial para ser jogadora de futebol. Todos os dias não conseguimos mensurar quantas garotas desistem de jogar. Quantas Martas deixamos de revelar por falta de investimento e encorajamento?

No país do futebol, se dedicar ao futebol feminino é um ato revolucionário. Nesse Brasil machista, que mata tantas mulheres diariamente, não é de se estranhar a morte de sonhos de meninas apaixonadas por um esporte que, na cabeça e na boca da sociedade patriarcal: “não é para elas”.

Hoje começa a Copa do Mundo de Futebol Feminino, na França, mas, diferente dos mundiais masculinos, não vemos as ruas pintadas e com bandeirinhas penduradas. Não temos o tradicional clima de festa pelos bares. É o esporte que ninguém vê. Mas não vê, simplesmente, porque não é transmitido, e sim porque as pessoas insistem em ignorar, porque é contra a cultura brasileira.

Desde sempre, somos acostumados a associar o futebol ao universo masculino. O pai quer ter um filho homem para levar ao estádio. O primeiro presente que o menino ganha é uma bola, já a menina, uma boneca. Na escola, a educação física é para todos os alunos, mas o futebol é só para os meninos. Se a menina curte jogar bola, logo é vítima de julgamentos sexistas. É chamada de “moleque macho”, a homofobia é revelada logo cedo. Se for aceita para jogar no meio dos garotos, é considerada “café com leite”, pois julgam que ela não tem a mesma habilidade deles. Não é fácil a vida da menina que quer entrar em campo e fazer a bola rolar. São tantas barreiras que o caminho mais fácil é desistir.

E, para aquelas que não jogam a toalha, a provação é diária: não basta mostrar seu talento, é preciso driblar o assédio, a objetificação do seu corpo, dentro e fora das quatro linhas.

As mulheres aprendem a lidar com a diferença de gênero tão discrepante nos gramados: enquanto veem seus colegas ganhando milhões em salários e premiações, lutam para não passar fome no exercício de sua profissão. Se há diferença salarial entre homens e mulheres em todas as áreas do mercado de trabalho, no futebol há um abismo aterrorizante. Porém, 2019 parece ser o ano do futebol feminino. Não há nada de muito grande, mas, em meio à escuridão, qualquer feixe de luz já gera esperança.

No último dia 8 de março, as jogadoras da seleção americana, atuais campeãs mundiais, deram um passo importante para tentar eliminar a desigualdade. Entraram com um processo contra a federação nacional de futebol (USSF) solicitando equiparação de salários e condições de trabalhos com os atletas da seleção masculina. Se vão conseguir, não sabemos, mas só a coragem delas já causou um burburinho positivo.

Além disso, a Adidas, poderosa marca do segmento esportivo, lançou a campanha “Equal pay for equal play“, anunciando que todas as jogadoras patrocinadas por ela e vencedoras da Copa do Mundo FIFA 2019 receberão os mesmos bônus pagos aos colegas homens. Jogada sensacional. Outra gigante do ramo que vem fazendo boas campanhas de publicidade e enaltecendo o esporte feminino, de maneira geral, é a Nike. Com o slogan “Só é loucura até você fazer”, a empresa divulgou um comercial empoderado e conseguiu milhões de visualizações. Visibilidade para ela e para a situação discriminatória que as mulheres enfrentam em qualquer esporte, principalmente no futebol feminino. Golaço. A partir deste ano também, todas os times classificados para disputar a Taça Libertadores da América terão que apresentar equipes femininas, do contrário, poderão ser eliminadas da competição. Não precisava ser assim, na marra, mas se não vai no jeito, que vá na força. O futebol feminino agradece.

Mas, pegando ainda o gancho do slogan da Nike, parece mesmo muito doido imaginar que, nos anos 40, as mulheres eram proibidas de jogar futebol. O esporte era “muito violento para elas”. É mais louco ainda saber que só agora, após 40 anos desde a liberação da prática em solo verde e amarelo, a gente vai ter, pela primeira vez, os jogos brasileiros da Copa do Mundo de Futebol Feminino transmitidos ao vivo pela principal TV aberta do país, a Rede Globo. Primeira vez desde o início da competição, há 28 anos.

Mesmo tendo a Marta, única estrela do futebol mundial a ser seis vezes considerada a melhor do mundo, vestindo a amarelinha? Ela merecia ser reverenciada antes. Mesmo entrando em campo com a maior artilheira de todas as Olimpíadas, com 14 gols? A Cristiane tinha o direito de ser admirada antes. Mesmo escalando a mesma jogadora em seis Olimpíadas, única atleta de esportes coletivos a participar de tantas edições dos jogos? A Formiga, no alto dos seus 41 anos de pura disposição e persistência, precisava ser aplaudida antes. Mas tudo bem, antes tarde do que nunca.

Que essa transmissão sirva não apenas para vermos os jogos das meninas, mas para que possamos enxergar toda luta que cada mulher que se dedica a esse esporte enfrenta diariamente. Sejam elas jogadoras, técnicas, árbitras, empresárias, jornalistas ou narradoras. Elas só querem respeito, espaço e liberdade para serem o que são: como quase todo brasileiro, apaixonadas por futebol.

Que a primeira taça em mundiais chegue para coroar esse ano de pequenas conquistas mas de grandes mudanças. E que, com o troféu, venha mais um motivo pra comemorar: um uniforme novinho, sem as estrelas que representam as conquistas masculinas. Elas merecem uma camisa que represente melhor sua história, com ou sem títulos. Ajuda nessa, CBF, elas nunca te pediram nada.

Eliane é jornalista e camisa 9.