MULHER DE QUEM?

Por Nathália Oliveira*

O que é o feminismo senão o ato de re-imaginar o mundo em todos os seus aspectos? E dentre todos eles, os que mais me chamam a atenção são os que envolvem a linguagem. Talvez porque eu vivo do que escrevo e leio compulsivamente. Talvez porque a palavra seja meu principal instrumento de luta e resistência. Ainda não sei.

O que sei é que há um bom tempo minha audição arranha e meus olhos dão uma lacrimejada toda vez que eu ouço e leio a expressão “a mulher de fulano”. Está se tornando uma verdadeira agressão ouvir ou ler isso. Afinal, a mulher é de quem, gente? O fulano comprou a mulher? Ela é propriedade dele?

Ah, Nathália, sua treteira, todo mundo fala assim. 

Ou

Ah, Nathália, larga de ser cri-cri, você fala “meu amigo”, “minha tia”, “meu professor”…

Tá, anjos, mas acontece que amigo, mãe, pai, tia, professor e etc, são funções sociais que todos temos, lugares que todos ocupamos, e quando usamos esses termos é porque alguém para ser mãe tem que ser mãe de outra pessoa (de pet?), para ser amigo, deve ser amigo de alguém…subentende-se uma relação entre duas ou mais pessoas, um elo. Quando você diz “mulher de”, você está colocando a palavra “mulher” como uma função social que exige esse elo, e isso simplesmente não é verdade. Ou pelo menos não no século em que vivemos, não é mesmo?

Uma mulher é uma mulher e ponto. Não exige elo, subordinação, conexão com mais nada.

Fui pesquisar sobre a origem dessa forma de usar a palavra mulher e encontrei neste texto de Mathias Vaiano Glens o seguinte:

Talvez seja refletindo esse preconceito de gênero que a linguagem (umas das principais, senão a principal, expressão de uma cultura) cunhou os termos marido e mulher. Porque ser marido é apenas uma parte de um todo maior que é ser homem. Daí existir uma palavra específica para nos referirmos ao homem casado. Mas, como a cultura machista vê a mulher casada como o ideal cultural para todas as mulheres, não foi preciso, e nem sequer conveniente, existir a palavra ‘marida’ ou qualquer outra mais específica para o antônimo de marido. Afinal, a cultura que oprime as mulheres não deseja que uma esposa seja apenas uma parte de um todo muito maior que é ser mulher. A cultura machista quer reduzir as mulheres à condição de esposa. Por isso transformou ‘mulher’ em sinônimo de ‘mulher casada’.”

Entendeu? É por isso que eu sinto um arrepio desconfortável na espinha toda vez que escuto alguém dizer “a mulher de fulano” ou “você veio com a sua mulher?” ou “esta é a Maria, minha mulher.”

E eu sei que não é mudando a nossa forma de falar que vamos impedir que milhões de mulheres continuem subjugadas aos maridos, ou sejam forçadas a casarem, ou se sintam como uma mercadoria, uma propriedade. Mas como eu disse, o feminismo é o exercício de reinvenção do mundo. E se “no princípio era o verbo”, como creem os cristãos, que a gente comece a reinventar com elas: as palavras.

Nathália Oliveira vive de contar histórias e é a criadora deste projeto.