Autoras, parem de colocar mulheres se espancando em suas novelas!

Por Nathália Oliveira*

Há algumas semanas, vi de relance a cena em que a personagem da atriz Alice Wegmann (já entrevistada por este projeto) leva uma surra da protagonista vivida por Julia Dalavia na novela Órfãos da Terra, da TV Globo.

É uma falha minha enquanto roteirista não acompanhar os folhetins de perto, mas ao ver essa cena, em uma novela que eu sei que é escrita por duas mulheres, e que tem uma personagem que levanta a bandeira do feminismo (vivida pela Guilhermina Libanio, também entrevistada por este projeto), eu me senti realmente mal de não conhecer a trama e não saber o porquê de eu estar, mais uma vez, tendo que assistir a duas mulheres se batendo em rede nacional.

Digo “mais uma vez” porque estar afastada das tramas das novelas me dá uma percepção um pouco diferente. É verdade, não conheço os personagens, seus conflitos ou motivações, mas a sensação que tenho é que, por acaso ou por alta recorrência, toda vez que paro na frente da TV vejo duas mulheres discutindo, rasgando as roupas uma da outra ou trocando tapas.

E o mais triste: a maioria das vezes é por causa de algum macho ingênuo que caiu na lábia da sedutora vilã.

Pesquisando sobre este tipo de cenas em novelas, encontrei momentos constrangedores que se estendem para além da ficção. Como este, por exemplo, em 2011, quando o Fantástico dedicou quase 10 minutos do seu programa para falar da surra que a personagem da Letícia Sabatella levou da personagem de Christiane Torloni na novela Caminho das Índias.

Quem não tiver problema em sentir vergonha alheia, vale a pena assistir ao vídeo todo:

E para quem for como eu, que tem dificuldade em lidar com a vergonha alheia, eu transcrevo aqui um trecho que dá o tom da situação:

“Tadeu Schmidt: Essa semana o Brasil acompanhou um acerto de contas surpreendente na novela Caminho das Índias. A surra que a Melissa, personagem da Christiane Torloni, deu na amante do marido dela, a Yvone, vivida pela Letícia Sabatella.

Patricia Poeta: E que surra, né? Pois a Letícia Sabatella tá aqui hoje com a gente para falar exatamente do quê? Dessa surra!”

Diga-se de passagem que a Letícia está visivelmente constrangida de estar ali falando nesses termos sobre a tal cena.

E tem algumas pérolas ditas por entrevistados nas ruas:

“Acho que é o sonho de qualquer mulher traída, né?”

“Ela tava ali no direito dela de mulher, de esposa dele.”

S o c o r r o.

“Ah, Nathália, mas isso já faz 8 anos! Muita coisa mudou e melhorou desde então.”

Pois é. Sim e não, né?

Porque estamos em 2019, no auge do questionamento feminista, levantamento de bandeiras e queda de paradigmas, e ainda assim, temos não só mulheres se batendo em novelas por causa de homem (em Órfãos da Terra a vilã fez várias maldades, mas o que faz ela levar o primeiro tapa – e todos os outros – é o marido da mocinha, com quem a vilã diz ter passado a noite), mas também com matérias como essa aqui em que o elenco celebra a cena e a própria Alice Wegmann diz que espera que sua personagem tenha aprendido algo com a surra. Isso está muito errado, pessoal.

Colocada a circunstância, deixe-me explicar que o lugar desde o qual eu falo sobre esse assunto não é o de mera crítica acusatória. Uma das coisas que o feminismo me ensina todos os dias é que há formas mais inteligentes de intervirmos quando percebemos que há mulheres reproduzindo as opressões machistas por hábito ou desinformação. Então, o que eu faço neste humilde texto é um apelo, um pedido para as autoras mulheres, que estão alcançando lugares de destaque dentro da dramaturgia brasileira. Um pedido para que estejam atentas à repetição de padrões, às armadilhas que o mundo do entretenimento nos impõe para alcançar resultados, às pressões que ainda sofremos para nos provar duas vezes melhores do que qualquer homem, simplesmente por sermos mulheres. Isso vale também para as atrizes. Vocês não têm o poder de decidir o destino ou as ações de suas personagens, mas fora da ficção, podem e devem problematizar essas situações, abrir o debate sobre as atitudes delas.

Quando você diz que espera que a sua personagem aprenda algo com a surra, passa a ideia de que mulheres precisam apanhar para aprenderem alguma coisa.

Endossa, não só a rivalidade entre mulheres, como também a violência doméstica, um dos problemas mais graves do nosso país. A ficção não está alheia à realidade e tampouco está isenta de exercer influência sobre ela. Nos rincões do Brasil, onde a TV Globo tanto se orgulha em dizer que chega na maioria dos lares, uma mulher que apanha em casa e sequer sabe que isso é um crime, vê uma cena como essa e aceita a sua condição de inferioridade, de alguém que tem culpa e apanha para aprender uma lição.

Repito: este não é um texto que quer condenar autoras ou atrizes. É um convite ao questionamento e um pedido sincero de uma mulher brasileira que vive de contar histórias de mulheres brasileiras, assim como as premiadas autoras Thelma Guedes e Duca Rachid.

Estamos juntas.

Nathália Oliveira vive de contar histórias e é a criadora deste projeto.